31 de dez. de 2008

Uma Boa Transação


Aprendemos que os holandeses foram expulsos do Brasil em 1654, numa guerra valente movida contra eles por índios, negros e portugueses. Só faltou explicar como essa gente armada de espingarda, espada e arco e flecha foi capaz de vencer a principal potência econômica e militar do século XVII. Na verdade, Portugal comprou o Nordeste dos holandeses, pagando o equivalente a 63 toneladas de ouro, após um acordo que foi costurado durante negociações que tiveram início em 1641. A primeira fronteira do Brasil não foi o Rio da Prata ou a Amazônia, mas sim o Nordeste; foi aí que nossa integridade territorial correu maior perigo. Por lamentável que tivesse sido, a perda do Rio Grande do Sul não teria comprometido a unidade nacional - como não o fêz a independência do Uruguai - mas a consolidação do Brasil holandês teria estilhaçado a América portuguesa. Aliás, sem a restauração portuguesa de 1640, não teria havido a restauração pernambucana de 1654, pois a Espanha certamente teria cedido de fato o Nordeste à Holanda. A negociata foi finalizada com o Nordeste sendo pago 2/3 em sal de Setúbal e 1/3 em duas praças-fortes do Malabar outrora conquistadas por Vasco da Gama nas Índias, o que bem simboliza a opção brasileira feita pelo governo português da restauração.

(Na foto, a casa do governador holandês Maurício de Nassau em Haia, hoje museu de pinturas da coleção particular da familia real holandesa)
Recomendação do dia: O livro "História de Antonio Vieira", ed.alameda, de João Lúcio de Azevedo, uma monumental biografia daquele que ficou conhecido como apóstolo dos índios, pregador extraordinário, político ardiloso, amigo dos cristãos-novos, defensor da escravidão dos africanos, intérprete dos profetas e, segundo o poeta Fernando Pessoa, imperador da língua portuguesa.

20 de dez. de 2008

O Grande Khan


Um líder com características ambientalistas e homofóbico. Assim um grupo de cientistas chineses descreve o lendário Gêngis Khan a partir da recuperação daquela que muitos consideram a mais antiga Constituição do planeta: o Código de Gêngis Khan, criado no século 13 pelo conquistador e seus conselheiros. Havia pena de morte tanto para aqueles que "...causarem estragos à pradaria mongol com escavações não autorizadas ou atearem fogo à vegetação" quanto para os que "...cometerem sodomia". O surto homofóbico da lei teria uma explicação estratégica: Gêngis Khan queria estimular a expansão da população mongol, que naquela época somava 1,5 milhão de pessoas, contra os 100 milhões de habitantes da vizinha China. Morreu com cerca de setenta anos, tendo sido sepultado em local até hoje desconhecido; todos os homens ou animais que cruzaram com a imensa caravana que levava os despojos mortais foram imediatamente mortos - não havia vingança nessas matanças, os animais eram eliminados para serem oferecidos em sacrifício enquanto os homens deveriam ser silenciados para garantir o segredo de Estado, pois ninguém deveria saber que o grande guerreiro estava morto até que se finalizassem todas as campanhas militares em andamento.

Recomendação do dia: O DVD do filme "O Ovo da Serpente", de Ingmar Bergman - Na Berlim arrasada pela Primeira Guerra Mundial, um desempregado judeu consegue refúgio no apartamento de um homem que também lhe oferece emprego em uma clínica onde realizam-se experiências pseudo-científicas - Muitas vezes a expressão "ovo da serpente" foi utilizada como metáfora para exprimir a constatação de um mal em processo de elaboração, de incubação. No desenvolvimento do ovo, pode-se acompanhar a lenta e inexorável evolução do monstro(o Nazismo, no caso do filme)que irá nascer.

6 de dez. de 2008

Camisas-Verdes


A tese de que os movimentos fascistas fora da Itália e Alemanha foram imitações apagadas e mal sucedidas parece sustentar-se apoiada em alguns exemplos na América Latina. O PNC(Partido Nazista do Chile) nunca teve grande importância; na Argentina, surpreendentemente, a despeito ou talvez devido à força das ideologias da ala direita, nenhum grande partido fascista vingou na década de 30. Não foi o que ocorreu no Brasil; em 1932 nasce a AIB(Ação Integralista Brasileira) denunciando, segundo o líder do movimento Plínio Salgado, "...a confusão reinante após a Revolução de 30" e exigindo um Estado intervencionista e com amplos poderes. Salgado conhecia Mussolini pessoalmente e certamente foi influenciado por este; tal qual o Fascismo europeu, a ideologia integralista elencou como adversários a combater, o Liberalismo, o Socialismo, o Capitalismo internacional e os judeus, não excluindo a utilização de meios violentos nessa luta. Chegando a reunir mais de 1.000.000 de militantes em 1937 (chamados de "camisas-verdes" devido ao uniforme), a AIB esfacela-se no ano seguinte, após uma fracassada tentativa de chegar ao poder através de um ataque ao Palácio da Guanabara e com Plínio Salgado sendo forçado a rumar para o exílio em Portugal.

(Na gravura, capa da revista "Anauê", saudação de provável origem tupi, significando "meu irmão" e que era utilizada pelos militantes integralistas)
Recomendação do dia: O livro "A Anatomia do Fascismo", de Robert O.Paxton - Ed.Paz e Terra - onde o aclamado historiador norte-americano demonstra que para compreender o Fascismo, temos que examiná-lo em ação, levando em conta o que ele fez e não apenas o que dizia ser.

14 de set. de 2008

A "Invencível"


A Invencível Armada (no espanhol antigo: Grande y Felicíssima Armada), chamada de "The Invincible Fleet" com certo tom irônico pelos ingleses no século XVI, foi uma esquadra reunida pelo rei Filipe II da Espanha em 1588 na tentativa de pôr fim à sua guerra com a Inglaterra. Saindo de Lisboa a 28 de Maio de 1588, com 130 barcos, 8 mil marinheiros e 18 mil soldados (grande parte dos estrangeiros da Invencível Armada eram pilotos, marinheiros e soldados portugueses; inclusive um dos principais esquadrões de batalha era denominado "Esquadra Portugal"), a Armada tinha como plano destruir a frota inglesa que defendia o Canal da Mancha e posteriormente escoltar o exército do Duque de Parma de 30 mil soldados, que aguardava nos Países Baixos Espanhóis. Só após 15 dias os espanhóis conseguiram avistar a costa inimiga; durante este tempo, a calmaria no litoral português e uma tempestade junto ao cabo Finisterra, separou a Armada. Após uma reunião do alto comando em Vigo, decidiu-se rumar para a Inglaterra, avistando-se a frota britânica em 19 de Julho. Às duas da manhã da segunda-feira seguinte, preparava o Conselho de Guerra inglês seis urcas velhas — os "navios-fogo" — que foram abarrotadas de combustível, enviadas para o centro da esquadra espanhola e em seguida incendiadas, fugindo os pilotos em seus batéis. A esquadra espanhola perdia assim a coesão e via-se reduzida a menos da metade de seus navios, que somente conseguiriam escapar contornando as costas da Escócia e Irlanda, em uma atribulada viagem que ainda sofreu com as tempestades de setembro, típicas na região.

Recomendação do dia: O livro "Filipe da Espanha", de Henry Kamen, ed.Record, uma biografia erudita, imparcial e justa do mais controvertdo rei espanhol.

28 de ago. de 2008

O Baile


O ocaso do Império brasileiro não poderia estar melhor simbolizado do que pelo derradeiro baile da Ilha Fiscal(foto), realizado em 9 de novembro de 1889, apenas seis dias antes da proclamação da República. Reunindo entre quatro e cinco mil pessoas, a festa tinha como motivação homenagear oficiais da marinha chilena que haviam aportado pouco antes no Rio de Janeiro. Com tal gesto, o Estado imperial pretendia mostrar aos históricos rivais argentinos que uma nova composição de forças surgia no continente, barrando possíveis ambições expansionistas de seus vizinho dos pampas. No palácio de estilo gótico(hoje parte integrante do complexo Cultural da Marinha), foi servido aos convidados um requintado buffet de carnes e peixes variados, regados a excelentes vinhos e champagnes. Enquanto isso, no cais, o povo era distraído por uma banda da polícia com lundus e fandangos, danças que contrastavam com o refinamento das valsas e polcas que embalavam políticos e oficiais... O comportamento dos participantes foi largamente explorado (a imprensa da época noticiou que peças íntimas foram encontradas na ilha depois da festa), no evento que marcou a melancólica despedida da monarquia.

Recomendação do dia: O livro "A Formação das Almas - O Imaginário da República do Brasil", de José Murilo Carvalho, ed.Companhia das Letras, onde o autor - com os olhos no final do século XIX - nos oferece um curioso passeio pelo momento de implantação do regime republicano através de imagens. Entre texto e ilustrações, aprendemos como mitos criados para a República - seus heróis, a bandeira verde-amarela e o nosso hino - traduzem com fidelidade as batalhas travadas pela construção de um rosto para a República brasileira.

27 de jul. de 2008

Intelectuais


Teria sido o surgimento dos intelectuais um fenômeno ocorrido apenas no final do século XVII, como afirma Paul Johnson, quando pensadores seculares substituíram padres, escribas e adivinhos, os quais em épocas de maior religiosidade haviam conduzido a sociedade ou, segundo opinião de Jacques Le Goff, seria o intelectual fruto da revolução urbana situada nos séculos XII e XIII que permitirá a emergência das universidades, verdadeiras catedrais do saber, nas quais grandes debates forjam os músculos dos trabalhadores da idéias? Independente do momento em que aparecem, os intelectuais não serão encarados nem como servos nem como intérpretes dos deuses e sim como seus substitutos, capazes de diagnosticar as doenças da sociedade e de curá-las com seu intelecto auto-suficiente...

Recomendação do dia: O livro "Descartes - Uma biografia intelectual", de Stephen Graukoger, ed.Contraponto, que trata da vida e obra de René Descartes, cuja filosofia encontrou oposição na Igreja e nas universidades até o século XVIII. Excluído da Academia das Ciências, o cartesianismo cedo se transformou em filosofia social específica, que aplicou o método da dúvida e o princípio das idéias claras e distintas ao pensamento vigente, desmascarando a falsidade de preconceitos e a presunção de verdades definitivas.

O Pai da Imprensa


Em 1450, todos os livros europeus eram copiados a mão e não somavam mais do que algumas centenas. Em 1500, eles já eram impressos e podiam ser contados aos milhares. A história de Johannes Gutenberg é um paradoxo: sua ambição era reunir todo o mundo cristão, mas sua invenção foi utilizada para separá-lo; ele desejou fazer fortuna, mas lhe foi cruelmente negado o direito de aproveitar os frutos do seu trabalho e uma vez que o segredo de sua descoberta foi revelado, o mundo nunca mais foi o mesmo... A invenção dos tipos móveis tornou possível o desenvolvimento da ciência moderna e da literatura, além de promover profundas mudanças políticas que levaram ao surgimento das nações.

Recomendação do dia: O livro "A Conturbada História das Bibliotecas", de Matthew Battles, ed.Planeta, onde cada página mostra como o armazenamento de enormes quantidades de livros em um só local vem despertando a atenção de inimigos da civilização, desde a destruição da coleção de Alexandria até as guerras mais recentes. Após este livro, fica difícil caminhar entre estantes sem pensar na vida intensa que é ocultada por sua aparência de paz e ordem.

2 de jan. de 2008

Poliandria no Quilombo de Palmares


Palmares reproduzia, dentro de suas fronteiras, a desproporção de sexos existente entre a população escrava. Esse desequilíbrio ocorria porque os senhores de escravos preferiam comprar homens jovens a mulheres e os traficantes procuravam suprir essa demanda. Calcula-se que, para cada mulher, havia três ou mais homens (variando com a área), fato que se irá refletir na composição por sexos da população palmarina. Se no quilombo fosse mantido o casamento monogâmico que os senhores de engenho impunham em suas fazendas, haveria um desequilíbrio familiar tão agudo que a desarticulação social seria inevitável. Instituiu-se assim a poliandria (na qual uma mulher tem vários parceiros sexuais concomitantes e com eles tem vários filhos), como assim descreveu um negro infiltrado em Palmares a mando de um grande proprietário de terras "...a cada escravo fugido que chega em Palmares é dado pelo conselho de justiça uma mulher, à qual possui junto com outros negros - dois, três, quatro ou cinco - pois sendo poucas as mulheres, lá adotam esse estilo para evitar contendas..." Entretanto, ao contrário do que acontecia com a maior parte da comunidade, os membros da estrutura de poder (como o rei e possivelmente os chefes de mocambos) praticavam a poligamia - Ganga Zumba tinha três mulheres, duas negras e uma mulata, enquanto Zumbi teve também algumas, havendo a hipótese de que uma delas era branca.

Recomendação do dia: O livro "Rebelião Escrava no Brasil", de João José dos Reis, ed.Companhia das Letras, um estudo cuidadoso do levante urbano ocorrido em 1835 na cidade de Salvador e que foi liderado por nagôs muçulmanos nascidos na África.

1 de jan. de 2008

O Papa e a História


Esperou em vão quem sonhava que o papa, em sua última viagem ao Brasil no ano de 2007, pedisse perdão pelos erros cometidos em nome da fé no continente sul-americano. Os sucessivos pedidos de perdão que foram a marca de João Paulo II não encontram eco na consciência de Bento XVI. Para ele, aqui não se travou uma guerra colonial que dizimou populações inteiras de ameríndios, num processo de evangelização legitimado pela superioridade da fé católica de cristãos portugueses e espanhóis. Líderes indígenas consideraram as declarações do papa "arrogantes e desrespeitosas". Eles discordam da tese de que a Igreja Católica os tenha purificado e que retomar suas religiões originais seja um retrocesso.
Num discurso para os bispos latino-americanos e do Caribe no encerramento de sua visita ao Brasil, o pontífice distorceu um pouco a história ao afirmar que a Igreja não havia se imposto aos povos indígenas das Américas. Segundo Bento XVI, os índios receberam bem os padres europeus, já que "Cristo era o salvador que esperavam silenciosamente".
"É arrogante e desrespeitoso considerar nossa herança cultural menos importante que a deles", respondeu Jecinaldo Satere Mawe, coordenador-chefe da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab).

Recomendação do dia: O livro "Da Esperança à Utopia", um testemunho de D.Paulo Evaristo Arns que registra a vida de alguém engajado na construção de uma Igreja nova e contemporânea desde os tempos em que, destemido defensor dos direitos humanos na época da ditadura, aprendeu a ser um hábil e firme negociador no convívio com os donos do poder.